Jurisprudência

IRC – Tributações autónomas; Despesas não documentadas; Regime de apuramento de despesas não documentadas e não contabilizadas; Princípios aplicáveis; Ónus da prova; Cabimento do recurso a métodos indiretos.

Sumário:

1. A prática de não contabilização de saídas que deveriam ser abatidas na conta 11-Caixa tornou possível a ocorrência de saídas de numerário, sem contrapartida e sem suporte documental. Tais fluxos constituem despesas não documentadas ou despesas confidenciais.

2. Não se mostra viciada de ilegalidade a liquidação da tributação autónoma prevista no CIRC sobre despesas não documentadas, que também não estão contabilizadas, determinadas pela AT em ação de verificação de caixa, para comprovação do saldo da conta 11-Caixa.

3. Também se não mostra viciada de ilegalidade a referida liquidação como resultado de a AT não ter recorrido a métodos indiretos para determinar quais as despesas que foram feitas, patenteadas pela inexistência na empresa dos meios monetários evidenciados pelo saldo da conta 11-Caixa e a que exercícios devem ser imputadas.

4. Aplicam-se à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios e regras constantes do referido Código para a liquidação e cobrança do próprio IRC, mas não os incompatíveis com a natureza da tributação autónoma enquanto imposto incidente sobre certas despesas, e não sobre o rendimento. Não se aplicam à tributação autónoma prevista no CIRC os princípios do rendimento acréscimo, da periodização do lucro tributável e da anualidade.

A tese que fez vencimento é perceptivelmente influenciada por preocupações de protecção da eficácia da Administração Tributária, pretendendo afastar uma interpretação que entende que «confere a sujeitos passivos de IRC incumpridores uma via segura para práticas de ‘caixa aberta’, que esvaziam sem nada documentarem nem contabilizarem, com o previsível resultado» e «para que tais práticas de evasão fiscal sejam bem sucedidas, ficando imunes à aplicação da lei, que as saídas tampouco sejam contabilizadas, assim inviabilizando a aplicação a tais esvaziamentos de caixa do princípio da especialização dos exercícios, caso este fosse entendido como aplicável a mais do que aquilo que está na lei».

Não são indicadas as normas jurídicas ou princípios hermenêuticos de que decorra que as normas fiscais devam ser interpretadas de forma a favorecer a Administração Tributária e contra os contribuintes.

Antes pelo contrário, o entendimento legislativo sobre a ponderação dos valores conflituantes a nível probatório quando se confrontam a Administração Tributária e dos contribuintes é no sentido de que, na dúvida sobre a realidade factual, se favorecem os contribuintes (artigo 100.º , n.º 1 do CPPT) e não a Administração Tributária.

Para além disso, é o legislador que, fixando prazos de caducidade  de prescrição para a generalidade dos impostos, demonstra que é preferível, na perspectiva legislativa, prescindir da receita fiscal em favor da segurança jurídica, mesmo nos casos de evasão fiscal, inclusivamente nos casos de factos relacionados com práticas evasivas de omissões de declarações e territórios usualmente conexionados com evasão fiscal (operações com off-shores), como mostram os artigos 45.º, n.º 7, e 48.º, n. 4, da LGT.

Nestes casos, os prazos são alargados, mas há prazos, apesar da praticamente certa existência de práticas de evasão fiscal.

Da mesma forma, mesmo em relação aos agentes dos crimes mais graves, fiscais e não fiscais, há prazos de prescrição.

É esta a opção do nosso Estado de Direito.

Desta perspectiva, o prazo eterno e inesgotável para liquidar tributações autónomas por despesas não documentadas em situações deste tipo, que resulta, na tese que fez vencimento,  da transposição do facto tributário para o momento da contagem, independentemente de poderem ter decorrido dezenas de anos sobre o momento da realização das despesas, não é, seguramente, uma opção legislativa no nosso Estado de Direito, em que  a lei deve ser interpretada «tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil) e de forma a garantir a coerência valorativa e axiológica, que é corolário daquela unidade.

No nosso Estado de Direito, mesmo estes cidadãos que presumivelmente têm estas práticas evasivas e criminosas (muitas vezes com valores gigantescos, como vem sendo cada vez mais do domínio público) têm direito a serem julgados por órgãos independentes e imparciais, que com objectividade e rigor apliquem as leis, respeitando os critérios axiológicos e valorativos definidos legislativamente e não  lhes sobrepondo os próprios critérios pessoais dos julgadores sobre o que deve ser a correcta aplicação da justiça e a prossecução do interesse público, mesmo que esses critérios sejam bem intencionados e correspondam ao que os julgadores entendem pessoalmente que devia ser a lei, se fosse a eles próprios e não ao legislador que a lei atribui poder legislativo.